A violência obstétrica, apesar de não constituir um fenómeno ou uma realidade nova, é uma expressão que começamos a ouvir mais apenas recentemente. Ou seja, práticas de violência obstétrica sempre terão existido, mas foi recentemente que se começou a falar do assunto com maior seriedade, a dar-lhe um nome e a pensar na necessidade de criar medidas para combater este tipo de violência.
Por ser algo conceptualmente recente, é natural que existam dúvidas e questões e que nem sempre seja claro o que é isto da violência obstétrica. É importante para qualquer pessoa compreender melhor a violência obstétrica, mas para quem está grávida, ainda mais. Isto porque é fundamental conhecermos de antemão os nossos direitos, as boas e as más práticas e como nos podemos defender e fazer valer esses direitos, através de um trato justo e respeitado.
Neste artigo vamos explorar o que é a violência obstétrica, através também de alguns exemplos e práticas, bem como de que forma podemos defendermo-nos deste tipo de violência, prevenindo-a ou agindo quando ela acontece.
O que é a violência obstétrica?
A violência obstétrica é toda a violência que ocorre no contexto da assistência à gravidez, parto e pós-parto, nas suas mais diversas formas. Ela acontece sempre que direitos reprodutivos são violados, sendo que estes direitos reprodutivos assentam em quatro pilares: integridade corporal, igualdade, diversidade e autonomia pessoal.
Podemos definir a violência obstétrica como a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher por profissionais de saúde, o que se pode traduzir num tratamento pouco humano, num abuso de procedimentos médicos e na patologização de processos naturais, o que se reflete na perda de autonomia e da capacidade de decidir de forma livre sobre o próprio corpo, o que por sua vez tem um impacto negativo na qualidade de vida das mulheres.
Por outras palavras, a violência obstétrica pode constituir-se de abusos, maus-tratos, de desrespeito ou negligência médica por parte perante uma mulher grávida. Muitas vezes estas práticas acontecem por se ignorar o carácter natural e fisiológico do parto, existindo uma intervenção muitas vezes desnecessária e indesejada pela grávida.
A violência obstétrica inclui más práticas clínicas, práticas que não têm devida fundamentação científica, e que violam ou anulam a autodeterminação e autonomia da grávida. Estas práticas de violência obstétrica muitas vezes passam por uso desnecessário de medicamentos, intervenções clínicas excessivas e desnecessárias que muitas vezes não recebem o consentimento devido da grávida, a recusa de tratamento, o desrespeito pelo consentimento informado e a desumanização da grávida.
Nunca tendo sido vítima de violência obstétrica, consegui sentir muitas vezes que o foco dado ao bebé me tornava a mim figura secundária, como uma “incubadora” com o propósito de servir aquele bebé. Acredito que este princípio ou mentalidade, ainda que possam não ser intencionais, muitas vezes podem conduzir a um trato pouco personalizado, humano e respeitador da pessoa que está grávida, mas que é, antes de tudo, uma pessoa, não apenas uma grávida ou uma mãe.
Exemplos de violência obstétrica
Depois de compreendermos, em traços mais gerais, o que é a violência obstétrica, para a melhor conseguirmos enquadrar, pode ser importante pensarmos em exemplos concretos de ações que podem constituir violência obstétrica:
- Agressões verbais ou humilhações, como por exemplo desconsiderar os sentimentos e sintomas da grávida, criticando, julgando, humilhando ou fazendo piadas. Muitas vezes passa também pelo uso de expressões grosseiras que geram sofrimento e incómodo na grávida. Infelizmente, conseguimos encontrar testemunhos de grávidas que declaram ter ouvido coisas como “quando foi para o fazer não gritou assim”, “não quis ter? agora aguenta!”, “é melhor fazer cesariana para não estragar a vagina para o seu marido”, “pare quieta senão vai doer mais”…
- Ofensas à integridade física, que podem incluir empurrões, amarrar à cama, fazer pressão na barriga, etc;
- Proibir ou impedir a grávida de se movimentar ou de se expressar durante o trabalho de parto;
- Práticas invasivas desnecessárias ou não-devidamente fundamentadas, que são feitas sem haver motivo clínico para tal, muitas vezes “apenas por rotina” (como por exemplo, episiotomias, manobra de Kristeller, algaliação, jejum prolongado…);
- Intervenções médicas não-consentidas, não dando informação suficiente à grávida sobre os procedimentos e não obtendo o seu consentimento. As gravidas devem sempre receber informações claras sobre os procedimentos que fazem parte da assistência ao parto, nomeadamente sobre riscos e benefícios, para poderem fazer escolhas com autonomia;
- Não respeitar a confidencialidade e privacidade, por exemplo expondo a mulher de forma não consentida e não necessária durante o trabalho de parto e pessoas não essenciais aos cuidados, ou partilhando dados sensíveis;
- Uso desnecessário de medicação, por exemplo ocitocina por rotina / sem indicação fundamentada para tal (é uma droga que acelera o parto);
- Sutura desnecessária, chamada muitas vezes de “ponto do marido”, que consiste em fazer uma sutura desnecessária para diminuir o diâmetro da entrada da vagina para ser “mais prazeroso” para o homem na penetração;
- Testar na grávida procedimentos que não foram ainda cientificamente validados;
- Não permitir que a grávida tenha direito ao acompanhamento durante o parto;
- Deixar a grávida sozinha, trancada ou isolada;
- Exigir à grávida, sem fundamentação clínica para tal, lavagem intestinal, jejum, não a permitir beber água durante o trabalho de parto;
- Afastar a mãe do bebé após o nascimento sem fundamentação clínica para tal;
- Mentir à grávida sobre a sua condição obstétrica e/ou do feto para, por exemplo, indicar uma cesariana sem motivos clínicos fundamentados, por conveniência dos profissionais de saúde ou da instituição, ou cesariana eletiva por indicações clínicas que não são cientificamente suportadas, como por exemplo mecónio, bacia materna estreita, feito com mais de 3,5kg, entre outros;
- Recusa de assistência ou de cuidados, por exemplo deixar a grávida sozinha por um longo período durante o trabalho de parto ou não lhe dar possibilidades de analgesia / medicamentos para aliviar a dor, ou outros cuidados de que ela possa necessitar;
- Negligência pelas necessidades da mulher, ignorando os seus pedidos associados ao cuidado e manutenção das suas necessidades básicas;
- Discriminação e/ou recusa de aceitação da autonomia da mulher;
- Condições da instituição de saúde desadequadas, como por exemplo ambiente pouco arejado, falta de conforto mínimo, falta de protocolos obstétricos e condições físicas para o parto fisiológico, falta de pessoal, falta de formação dos profissionais de saúde, constrangimentos materiais, entre outras.
Quais as consequências da violência obstétrica?
Infelizmente, a violência obstétrica ainda é muitas vezes desvalorizada, olhada como uma coisa que aconteceu naquele momento e que se tem de esquecer e ultrapassar. Também é, muitas vezes, desculpada e legitimada, porque quem a repercute são profissionais de saúde aos quais é atribuída toda a legitimidade e credibilidade.
A mulher fica muitas vezes numa posição de vulnerabilidade, sendo desvalorizada ou descredibilizada a sua experiência e os seus motivos. Afinal, “só” estamos grávidas, e isso pode colocar-nos num lugar de ter de acarretar as indicações médicas. No entanto, se o médico é especialista em medicina, a mulher é especialista em si mesma, no seu corpo e naquilo que pretende para o seu bebé.
A verdade é que a violência obstétrica é violência e pode ter consequências sérias para as vítimas, que não devem ser ignoradas.
Importa pensar que o período de vivência de uma gravidez, parto e pós-parto é um período altamente sensível e vulnerável, pelo que o que nele acontece e o apoio que existe ou a falta dele podem tanto ser altamente empoderadores como altamente destrutivos. Quando estamos mais vulneráveis, o que nos acontece é potencialmente mais impactante, mais permeável – para o bem e para o mal.
A forma como a mulher é tratada e acompanhada pelos profissionais de saúde pode ter um impacto significativo no seu empoderamento, conforto, segurança, pelo que, quando a violência tem lugar, os danos infligidos podem resultar em traumas físicos e/ou emocionais.
Para pensarmos na seriedade das consequências da violência obstétrica basta referirmos, por exemplo, que esta pode afetar a recuperação quer física quer psicológica da mulher durante o período do pós-parto. Além disso, pode ainda afetar, a médio e longo-prazo, a sua autoestima, saúde mental e vida sexual, comprometendo, por sua vez, a relação com o seu bebé, o sucesso da amamentação e o desenvolvimento saudável do recém-nascido.
A violência obstétrica pode levar a consequências específicas como rejeição do próprio corpo, medo de ter relações sexuais ou problemas sexuais diversos, complicações de saúde, sintomatologia ansiosa, sintomas de stress-pós-traumático, depressão pós-parto, entre outras.
Em suma, uma experiência de parto e uma experiência obstétrica traumática, marcada pela violência obstétrica, pode deixar marcas na mulher em diferentes dimensões da sua vida e criar-lhe limitações significativas que a acompanharão por muito tempo.
Em alguns casos há inclusive consequências físicas que permanecem, como quando há procedimentos médicos invasivos e desnecessários (como, por exemplo, as episiotomias), muitas vezes mal-executados, que resultam em lesões prolongadas ou até irreversíveis para a mulher. Mulheres que relatam ficar semanas sem se conseguirem sentar, meses ou anos com incontinência urinária, ou até dor sexual irreversível. Mesmo no caso de cesarianas sem devida fundamentação clínica, isto significa para as mulheres mais riscos em gravidezes seguintes, algo que muitas vezes não é informado ou considerado.
Violência obstétrica em Portugal
Dispomos já de alguns dados acerca da violência obstétrica em Portugal, nomeadamente através do inquérito “Experiências de Parto em Portugal”, promovido pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto. Responderam a esta inquérito cerca de 3800 mulheres, e 43,5% destas indicara não ter tido o parto que desejavam. Mais de dois quintos das mulheres indicaram não ter tido informações sobre opções de parto, como indução, cesariana, parto domiciliar, ou outras.
Nas respostas a este inquérito surgiram também exemplos de práticas não recomendadas e que podem ser enquadradas como violência obstétrica, como a manobra de Kristeller ou procedimentos sem consentimento esclarecido e informado, ou mesmo contra a vontade da mulher. Verificaram-se também casos, embora fossem a minoria, em que o direito a ter um acompanhante consigo no trabalho de parto não foi respeitado. Algumas mulheres referiram também não ter sido respeitada a sua escolha sobre a posição para a expulsão durante um parto, e quase um quarto não se sentiu bem com a posição adotada.
Apesar de, neste inquérito, a maioria das mulheres ter tido uma experiência globalmente positiva, mais de um décimo refere que a experiência de parto influenciou negativamente a sua autoestima. 7% das mulheres refeririam que o parto influenciou de forma negativa a relação com o/a parceiro/a e 14% que afetou negativamente a sua vontade de ter mais filhos no futuro. Mais de dois quintos das mulheres consideram que não foram consultadas sobre os exames realizados durante o trabalho de parto e o parto.
Adicionalmente, mais de um décimo das mulheres não se sentiu respeitada pelos profissionais de saúde, tendo indicado a existência de uma comunicação pouco afável, não se terem sentido ouvidas, seguras ou apoiadas durante o parto.
Em 2017 foi criada uma petição pública pelo fim da violência obstétrica nos blocos de parto dos hospitais portugueses, que conseguiu em três dias o número de assinaturas necessárias para submissão na Assembleia da República.
Estes dados ajudam a demonstrar que a violência obstétrica é uma realidade em Portugal, o que faz com que seja importante pensarmos coletivamente em como combater este fenómeno e, a nível individual, como nos podemos proteger dele.
No entanto, importa também olharmos para os aspetos positivos e dizer que Portugal não deixa de ser um país seguro para uma mulher grávida, que felizmente o é, e que as práticas de violência obstétrica não serão a regra e aquilo que acontece maioritariamente. Ainda assim, os casos de violência obstétrica existem e não devem ser ignorados, sendo muito importante fazermos mais e melhor para nos protegermos, individual e coletivamente.
Como saber sou vítima de violência obstétrica?
Muitas vezes pode ser difícil para a mulher conseguir identificar e enquadrar a experiência que está a viver ou viveu dentro da violência obstétrica. Isto porque a gravidez e o parto são momentos de vulnerabilidade, o que fragiliza e faz com que muitas vezes nos questionemos sobre aquilo que estamos a sentir ou a pensar. Esta vulnerabilidade e por vezes falta de autoconfiança e de voz pode tornar difícil esta capacidade de dizer “isto não é correto” ou “eu não devia ter passado por isto”.
Além disso, como em qualquer trauma, o processar do que aconteceu leva tempo, e após um parto a mulher está a reestabelecer-se e a viver uma série de desafios novos (o cuidar de um bebé, a amamentação, a recuperação física, etc), o que também pode dificultar a tomada de consciência do que de facto aconteceu.
Deste modo, conhecer alguns sinais pode ajudar-nos a enquadrar se de facto poderemos ter sido vítimas de algum tipo de violência obstétrica:
- Não se ter sentido respeitada pelos profissionais de saúde;
- Não lhe ter sido permitido tomar decisões importantes relativas à sua gravidez, parto ou pós-parto;
- Terem-lhe sido impostas intervenções;
- Ter-lhe sido recusado o acesso a analgesia;
- Ter sido coagida a fazer analgesia epidural ou outra intervenção médica sem fundamentação para isso;
- Não lhe terem apresentado alternativas e opções a determinados tratamentos ou intervenções;
- Terem intervindo no seu corpo sem autorização e/ou consentimento, sendo que este consentimento deve ser apresentado de forma completa, informada, livre e esclarecida;
- A terem, de alguma forma, humilhado, gozado ou silenciado.
Como prevenir a violência obstétrica?
Pode eventualmente ser excessivo falarmos em prevenir violência obstétrica, pelo menos de forma individual, na medida em que isso pode criar a ideia de que é algo que está no nosso controlo. Na verdade, a vítima não tem culpa ou responsabilização pela violência que nela é infligida.
Apesar disso, há algumas coisas que podemos fazer no sentido de nos empoderarmos e de termos maior poder de decisão sobre o nosso processo de gravidez, parto e pós-parto. Essas pequenas ações, não impedindo que a violência obstétrica aconteça, podem torná-la menos provável ou minimizar a sua ocorrência.
Algumas das pequenas coisas que podemos fazer são:
- Envolvimento ativo no processo desde o início da gravidez, procurando informação, escolhendo os profissionais de saúde que quer que a acompanhem, e colocando todas as questões e dúvidas, procurando também a informação de forma ativa e pró-ativa;
- Usar sempre o boletim da grávida e ter sempre consigo todos os documentos e relatórios clínicos pertinentes e importantes relativos à gestação, pedindo também aos profissionais de saúde que registem as informações;
- Conhecer os direitos relativos à gravidez, parto e pós-parto e saber como agir em relação a esses direitos;
- Fazer aulas de preparação para o parto, para conhecer e estar mais informada acerca do processo;
- Se possível, escolher o local onde quer ter o parto e, no caso de um parto hospitalar, conhecer a instituição de saúde de antemão, conhecendo as condições e procedimentos que aí são praticados;
- Elaborar um plano de parto e entregá-lo na instituição de saúde, levando também uma cópia consigo no dia do parto;
- Se fizer sentido, equacionar a possibilidade de contratar uma doula, que forneça um acompanhamento personalizado e apoie nas escolhas ao longo da gravidez, parto e pós-parto;
- Escolher o acompanhante certo para acompanhar no parto e pós-parto, conversando sobre as suas preferências e vontades e assegurando que ele/a ajudará a que sejam honradas e respeitadas.
O que fazer caso seja vítima?
No caso de a violência ter ocorrido, temos todo o direito de procurar que haja responsabilização por aquilo que aconteceu e não temos, de forma nenhuma, de nos silenciar. Isto é verdade para qualquer tipo de violência – não é porque ela já aconteceu e porque não pode ser remediada, que nos devamos silenciar. Afinal, o reconhecimento da nossa dor e das repercussões é fundamental para que possamos superar o trauma.
Além disso, também é fundamental garantir que a responsabilização existe, e que, eventualmente, as mudanças sejam geradas, que as experiências possam ser diferentes para as mulheres que vierem a seguir a nós.
Infelizmente, a desvalorização ainda acontece muito, o que faz com que seja ainda mais difícil para quem passou pela situação reunir as forças para fazer alguma coisa em relação a isso. Ouvimos coisas como “o que importa é que já passou”, ou “tens agora um bebé saudável”, que minimizam e anulam a experiência vivida, acabando por poder até reativar o trauma e torná-lo difícil de processar. Muitas vezes, nós próprias podemos acabar por acreditar nestas afirmações, questionando o nosso próprio processo e sofrimento.
Então, acima de tudo, é importante saber e reconhecer que o sofrimento é legítimo. E a necessidade de fazer algo em relação a isso, também.
Caso considere ter sido vítima de violência obstétrica, procure:
- Recolher todas as provas que tiver, desde fotos, vídeos a documentos e relatórios hospitalares e clínicos. Para isso, deve pedir o processo clínico junto do hospital;
- Converse com o seu acompanhante para o ajudar na reunião destas provas e para partilharem a experiência e aquilo que cada um vivenciou e se recorda;
- Elabore, se possível com a ajuda do/a acompanhante, um relato daquilo que aconteceu, detalhando de forma mais completa possível a violência sofrida e aquilo que sentiu, bem como as suas consequências;
- Junte todos estes elementos, o relato e as provas;
- Procure, se possível, auxílio de um advogado;
- Apresente reclamação junto do Hospital (livro amarelo no setor público, livro de reclamações no hospital privado) e apresente também a reclamação junto da Entidade Reguladora da Saúde;
- Apresente queixa junto das ordens profissionais, nomeadamente, dos médicos ou dos enfermeiros;
- Apresente queixa-crime junto do Ministério Público ou Órgão de Polícia Criminal, bem como ação nos tribunais cíveis ou administrativos para obtenção de indemnização pelos prejuízos sofridos.
Pode procurar ajuda para este processo junto do Observatório de Violência Obstétrica, em ovoportugal.pt.