Neurodivergente: significado, desafios e intervenção

É provável que, em algum momento, já se tenha deparado com o termo “neurodivergente” ou “neurodiversidade”. É um conceito de certa forma recente, embora aquilo a que se refere não o seja, uma vez que a neurodiversidade sempre existiu. É também possível que possa ter dúvidas sobre o que significa o termo “neurodivergente”, e esta é de facto uma pergunta comum e frequente.

Ainda bem que atualmente falamos e ouvimos falar mais de neurodiversidade, porque é através do conhecimento e da informação que se criam oportunidades para todas as pessoas. Mas é também fundamental que a informação seja esclarecida, clara e fidedigna. Escrevi, por isso, este artigo para ajudar a clarificar possíveis dúvidas e a compreender melhor o que é a neurodiversidade ou ser neurodivergente.

Neurodivergente: o que significa?

Se pensarmos bem na palavra “neurodivergente”, ela já nos dá algumas pistas sobre o seu significado. “Neuro” remete-nos para funcionamento neurológico, e “divergente” significa diferente. Então, ser neurodivergente é, no fundo, ter um funcionamento neurológico ou cognitivo de alguma forma diferente do que seria a norma ou o padrão. O oposto de ser neurodivergente é ser neurotípico, ou seja, ser alguém cujo desenvolvimento do ponto de vista neurológico foi e é o esperado e, consequentemente, a forma como a pessoa funciona do ponto de vista cognitivo, ou como pensa, é normativa ou encaixa no padrão do que consideramos normal.

Deste modo, a pessoa neurodivergente apresenta diferenças a nível neurológico ou cognitivo, o que resulta em formas diferentes de ver e pensar o mundo, o que, por sua vez, pode trazer alguma dificuldade na adaptação às exigências quotidianas. Uma pessoa neurodivergente pensa, processa informações e comunica de uma forma diferente.

Quando nos referimos a funcionamento neurológico ou cognitivo, referimo-nos à forma como o cérebro funciona em termos de aprendizagem, atenção, memória, processamento de informação, socialização, humor, entre outras funções cognitivas importantes.

Que condições podem estar associadas?

Compreendemos então que ser neurodivergente significa um desenvolvimento e funcionamento neurológico ou cognitivo atípicos. Mas em que é que isto se traduz e que relação pode ter com conceitos e condições já comumente conhecidos?

Podemos então associar as pessoas neurodivergentes com condições como as perturbações do espectro do autismo, a perturbação de hiperatividade e défice de atenção, ou a dislexia. Estas condições advêm de perturbações no neurodesenvolvimento e resultam em alterações numa ou várias funções cerebrais ou cognitivas. Vamos compreender melhor duas das principais condições associadas à neurodivergência: a perturbação do espectro do autismo e perturbação de hiperatividade e défice de atenção.

Perturbação do Espectro do Autismo

A Perturbação do Espectro do Autismo (PEA) caracteriza-se pela presença de défices ao nível da comunicação social e na interação social em múltiplos contextos, conforme manifestado por:

  • Défices na reciprocidade socioemocional, que podem ir desde dificuldade em estabelecer interações sociais e iniciar e/ou manter uma conversa dita normal a dificuldade em partilhar interesses, emoções ou afeto;
  • Défices nos comportamentos comunicativos não-verbais usados nas interações sociais, variando, por exemplo, de comunicação verbal e não-verbal pouco integrada a anormalidade no contexto visual e na linguagem corporal, ou défices na compreensão e uso de gestos, até ausência total de expressões faciais e comunicação não-verbal;
  • Défices para desenvolver, manter e compreender relacionamentos, variando, por exemplo, de dificuldade em ajustar o comportamento para se adequar a contextos sociais diversos, até dificuldade em partilhar brincadeiras imaginativas ou fazer amigos, a ausência de interesse pelos pares.

É ainda característico da PEA a existência de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades, conforme manifestado por pelo menos dois destes aspetos:

  • Movimentos motores, uso de objetos ou fala estereotipados ou repetitivos (por exemplo, alinhar brinquedos ou girar objetos, estereotipias motoras, repetir sílabas, dizer frases ou palavras particulares que não são compreendidas pelos outros);
  • Insistência nas mesmas coisas, adesão inflexível a rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não-verbal (por exemplo, não conseguir lidar com pequenas mudanças ou sofrer muito com elas, ter formas de pensar rígidas, apresentar rituais rígidos, comer sempre os mesmos alimentos e não tolerar quaisquer outros, etc);
  • Hiper ou hiporreatividade a estímulos sensoriais ou interesse pouco comum por aspetos sensoriais do ambiente (por exemplo, indiferença à dor, reação contrária a sons ou texturas específicas, fascinação visual por luzes ou movimento, etc);
  • Interesses fixos e altamente restritos que são anormais em intensidade ou foco.

Estes sintomas surgem precocemente no período do desenvolvimento, mas podem não ser completamente percetíveis até mais tarde, quando as exigências sociais acabam por exceder as capacidades existentes.

A PEA trata-se de um espectro porque existem diferentes níveis de gravidade. É o nível de gravidade que distingue aquilo que chamamos de autismo de alto ou baixo funcionamento, sendo o autismo de alto funcionamento aquele de menor gravidade ou menor comprometimento dos aspetos anteriormente indicados, e o de baixo funcionamento aquele em que a gravidade é maior. O autismo de alto funcionamento era anteriormente designado por síndrome de Asperger.

Pessoas com autismo de alto funcionamento podem conseguir ter uma elevada funcionalidade em todas as áreas da vida – social, amorosa, profissional, etc. Em alguns casos de autismo de baixo funcionamento, podem existir comprometimentos graves como não conseguir falar ou apresentar défice cognitivo ou intelectual grave.

Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção

A Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção, ou PHDA, caracteriza-se por um padrão de desatenção e/ou hiperatividade-impulsividade que interfere no funcionamento e desenvolvimento, conforme caracterizado por um ou ambos dos seguintes aspetos:

  • Desatenção: a desatenção pode verificar-se por sintomas como não prestar atenção aos detalhes, cometer erros por descuido, ter dificuldade em manter a atenção em tarefas ou atividades lúdicas, parecer não ouvir quando alguém lhe fala, parecer estar “com a cabeça na lua”, não conseguir seguir instruções até ao fim ou não conseguir terminar trabalhos ou tarefas, ter dificuldades de organização, evitar tarefas que exigem esforço mental, perder coisas com frequência, etc;
  • Hiperatividade e impulsividade: pode expressar-se através de sintomas como estar sempre a remexer e não conseguir manter-se quieto, estar sempre a levantar-se em situações que se espera que permaneça sentado, não conseguir envolver-se em atividades de lazer calmamente, agir como se estivesse “ligado a um motor”, falar demais, interromper os outros, ter dificuldade em esperar pela sua vez, etc.

O que é o movimento da neurodiversidade?

Como referi inicialmente, as palavras “neurodivergente” ou “neurodiversidade” são recentes, porque não foi há muito tempo que surgiu o movimento da neurodiversidade, que pretende trazer visibilidade para as pessoas neurodivergentes e promover a sua inclusão. O conceito de neurodiversidade foi cunhado pela socióloga Judy Singer, em 1998, sendo que ela também se situava, segundo a própria, “algures no espectro do autismo”.

O movimento da neurodiversidade procura trazer um olhar diferente para as pessoas neurodivergentes. Em vez de as olhar como pessoas com uma patologia, contraria um pouco o modelo médico da deficiência e propõe olhar para as pessoas neurodivergentes como pessoas com particularidades, sendo as barreiras sociais o principal fator que as restringe e que limita a sua adaptação ao mundo e à sociedade.

Este movimento convida também a vermos a neurodiversidade como mais do que uma patologia ou deficiência, enfatizando por exemplo os pontos fortes e as habilidades excecionais que as pessoas neurodivergentes apresentam. Uma pessoa com perturbação de défice de atenção e hiperatividade, por exemplo, pode ser muito criativa. Uma pessoa autista pode ter uma memória excecional.

O movimento da neurodiversidade preconiza que ser neurodivergente se trata apenas de uma diferença humana que deve ser respeitada como outras diferenças, por exemplo raciais, sexuais, etc.

Assim, o movimento da neurodiversidade acaba por propor que em vez de vermos patologias, possamos ver diferenças cognitivas e possamos criar espaço para que elas possam existir de forma mais respeitadora e inclusiva.

As pessoas autistas, especialmente as de alto funcionamento, são a força motriz do movimento da neurodiversidade. Estas encaram o autismo não como uma doença, mas como uma parte da sua identidade. Consequentemente, consideram que procurar uma cura implicaria ver o autismo como uma doença e não como uma diferença.

Existe, inclusivamente, um movimento de “cultura autista”, no qual as pessoas assumem a sua identidade autista e celebram essa subcultura, facilitando a interação entre pessoas que estão no espectro, partilhando interesses e experiências e encontrando até amigos ou futuros companheiros/as. Atualmente celebra-se, a 18 de junho, o dia do orgulho autista, como forma de celebração da neurodiversidade dos autistas.

Qual o reverso da moeda desse movimento?

O movimento da neurodiversidade não é consensual e há quem se oponha ao mesmo, nomeadamente profissionais e pais de crianças autistas. O principal argumento é que o movimento da neurodiversidade e a cultura autista, ao negarem a patologia e recusarem veementemente uma cura, podem fazer com que as terapias disponíveis para crianças autistas deixem de ser financiadas e que se passe apenas a utilizar a aceitação e acomodação. Defendem os pais que isto seria o mesmo que ter um filho surdo e deixar de lhe disponibilizar implantes, por se considerar a surdez apenas uma diferença que não deve ser eliminada.

O debate mantém-se aceso e intenso: de um lado, estão as famílias de autistas, sobretudo com graus mais severos de autismo, que lutam pelo acesso a tratamentos e terapias – o que implica reconhecer o autismo como uma perturbação ou patologia – e, do outro lado, os ativistas que consideram as terapias pró-cura uma intolerância com a diferença e a neurodiversidade e a implantação de políticas eugénicas.

Como identificar alguém neurodivergente e como agir?

Poderá estar a ler este artigo apenas pela curiosidade de compreender o que é ser neurodivergente ou o que significa a palavra neurodiversidade, mas também pode dar-se o caso de ter um interesse mais particular no assunto. Serei eu neurodivergente? Será que aquela pessoa em que estou a pensar poderá sê-lo? Como posso identificar os sinais, por exemplo, num filho? E como deverei agir perante esta diferença?

Como vimos, uma pessoa neurodivergente processa o mundo e age sobre ele de uma forma distinta, e existem variadas formas através das quais isto pode acontecer. Podemos estar perante alguém que tem uma forma de interagir com os outros peculiar; ou alguém que não consegue aprender da forma habitual.

Mais do que identificar a diferença – porque, no fim de contas, todos somos diferentes – pode ser importante identificar necessidades. Ou seja, se falarmos por exemplo numa criança neurodivergente, importa questionar: será que esta criança tem necessidades que não estão a ser atendidas? Será que os contextos em que ela se move estão a ser capazes de suprir as suas necessidades e de lhe proporcionar tudo o que ela precisa para se desenvolver de forma saudável e atingir o seu potencial?

Nem todas as crianças vão aprender ou comunicar da forma padrão ou expectável, e é importante encontrarmos formas que tornem possível para cada criança aprender e comunicar.

No caso das crianças neurodivergentes, a escola, a família e a comunidade devem formar uma rede disponível, atenta e em interação para que seja possível acomodar a diferença e criar oportunidades.

Sempre que existam dúvidas, é importante que estas sejam referidas aos profissionais que acompanham o desenvolvimento da criança e que, com um olhar mais atento, poderão identificar necessidades. Quanto mais precocemente estas forem identificadas, mais rápida e prontamente poderão ser criadas respostas eficazes.

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