Compreender, prevenir e lidar com uma gravidez indesejada

Se a gravidez é para algumas pessoas o chamado “estado de graça”, para outras pode ser vista como algo indesejável, quando a maternidade não faz parte dos planos, seja de forma temporária ou definitiva. Assim, nem sempre a gravidez é algo planeado e desejado, e nem sempre é geradora de sentimentos positivos. A gravidez indesejada acontece e pode gerar grande sofrimento, podendo ter um impacto significativo na vida da grávida.

Neste artigo iremos explorar as diferentes circunstâncias em que a gravidez indesejada pode ocorrer, o seu impacto e possíveis consequências, assim como estratégias para a prevenir e para gerir a situação quando esta já ocorreu.

Como acontece uma gravidez indesejada?

É por demais óbvio e claro para qualquer adulto como é que uma gravidez acontece. No entanto, o que não é tão óbvio quanto parece é o quão comum uma gravidez indesejada pode ser e as variáveis que lhe podem estar associadas. No fundo, uma gravidez indesejada não é tão linear quanto possamos pensar, é sim uma situação complexa.

Há muitas vezes o mito ou a ideia errada de que existe total controlo sobre a conceção e possível gravidez, e que, por consequência, quando uma gravidez indesejada acontece, estamos perante uma irresponsabilidade ou negligência de alguma forma. No entanto, isto nem sempre é verdade, e é importante contemplarmos as tonalidades de cinzento em vez de termos uma visão a preto e branco.

Deste modo, uma gravidez indesejada não acontece só pelos motivos mais comumente conhecidos, como falta de informação ou conhecimento, negligência ou adoção de comportamentos de risco em termos sexuais e reprodutivos, etc. Uma gravidez indesejada pode acontecer por diversos motivos e ser influenciada por aspetos como:

  • Os métodos contracetivos não são 100% infalíveis, apesar de a maioria deles ter uma taxa de eficácia bastante elevada, a verdade é que não é absoluta. Podemos dizer que o único método que garante uma eficácia absoluta e inequívoca é a abstinência, e parece-me óbvio porque é que esse método não é nem tem de ser, na maioria das vezes, uma opção. Mesmo nos casos em que a abstinência sexual é escolhida, esta pode falhar em casos de violência sexual ou coerção, seja fora ou dentro de uma relação (sim, porque nas relações amorosas também pode existir coerção e nem sempre existe consentimento!).
  • Pode haver receio em usar métodos contracetivos, por desinformação, por preocupação com efeitos colaterais, ter relações sexuais pouco frequentes ou encontrar oposição (frequentemente por parte dos homens) ao uso do preservativo.
  • Os métodos contracetivos têm uma utilização ideal que nem sempre se cumpre. Por exemplo, é comum que a mulher se possa esquecer de tomar a pílula, apercebendo-se disso ou não; o anel vaginal pode não ter sido mantido à temperatura ideal, e isso comprometer a sua eficácia; o preservativo pode não ter sido colocado da maneira correta ou conservado da forma devida, comprometendo também assim a sua eficácia.
  • O raciocínio e tomada de decisão podem ser influenciados de inúmeras formas, sem que isso tenha de ser necessariamente uma irresponsabilidade ou falta de cuidado. Se normalmente conseguiríamos tomar as decisões e adotar os comportamentos necessários para prevenir uma gravidez indesejada, há várias coisas que influenciam e podem perturbar o nosso processo de tomada de decisão: consumo de substâncias, mesmo que em níveis ditos equilibrados e socialmente aceites; vulnerabilidade emocional; stress e existência de stressores e problemas na nossa vida; fatores hormonais; pressão, manipulação ou desejo de agradar ou outro.
  • O organismo, nomeadamente no que ao ciclo menstrual e fertilidade diz respeito, não é uma máquina rígida e previsível, podendo haver inúmeras alterações que impactam por exemplo no período fértil. É possível, por exemplo, uma pessoa acreditar estar menstruada (e por isso não haver perigo de engravidar), mas na verdade estar a ter um sangramento diferente, podendo engravidar nesse período.

Além dos motivos mencionados, que são de natureza mais individual, não podemos também ignorar que a gravidez indesejada pode também ser um problema social, na medida em que pode resultar de carências sociais ou económicas (como falta de acesso a métodos contracetivos), abusos ou falta de serviços sanitários.   

Em que circunstâncias pode ocorrer?

Como vimos, uma gravidez indesejada é um acontecimento complexo e muitos fatores podem influenciar a forma como ela acontece. Além disso, existem também circunstâncias diferentes e contexto distintos nos quais uma gravidez indesejada ocorre, e isso vai determinar, necessariamente, o impacto e a forma como esta gravidez indesejada vai ser vivida.

Uma gravidez indesejada pode surgir, por exemplo, na adolescência, sendo esta uma fase de vida de particular vulnerabilidade e alguma falta ainda de maturidade e capacidade para tomar boas decisões, nomeadamente do ponto de vista sexual e reprodutivo. Quando indesejada, uma gravidez adolescência tem necessariamente consequências diferentes de uma gravidez na vida adulta, considerando que a adolescência é um período crítico na formação da personalidade e no estabelecimento de planos e objetivos para a vida futura.

Uma gravidez indesejada pode também acontecer na vida adulta em diferentes circunstâncias. Pode, por exemplo, ocorrer quando a pessoa está numa relação ou quando não o está; pode ocorrer numa fase da vida de maior ou menor estabilidade, sobre diferentes pontos de vista (financeiro, profissional, emocional); pode acontecer sob circunstâncias físicas e de saúde mais ou menos favoráveis, podendo inclusive constituir um risco para a pessoa grávida.

Estas circunstâncias poderão determinar, por exemplo, se a gravidez indesejada é mais ou menos fácil de integrar. Determina até o desfecho ou a decisão que se poderá tomar em relação à gravidez indesejada. Se, nalguns casos, a gravidez pode ser aceite e até tornar-se desejada, noutros casos o seu curso pode gerar sofrimento e noutros a decisão pode ser a de interromper a gravidez.

Independentemente disso, é inegável que as circunstâncias em que a gravidez indesejada ocorre podem determinar o impacto e as consequências que esta poderá vir a ter.

Consequências de uma gravidez indesejada

Uma gravidez indesejada terá certamente um impacto na vida da pessoa, que poderá ser maior ou menor conforme as circunstâncias que referi anteriormente. As consequências podem ser diversas e em diferentes dimensões:

Consequências emocionais

Podem existir sentimentos de culpa, angústia, raiva, vergonha, medo, ansiedade, tristeza, depressão na gravidez, entre outros. A situação pode gerar na pessoa um grande sofrimento emocional, por ser uma situação não desejada ou planeada, levando a que haja uma sensação de falta de controlo e previsibilidade. É um momento de crise, em que de repente a vida fica alterada de uma forma que não se planeou e, seja qual for a decisão tomada, não se pode voltar atrás no sentido em que não é possível fazer de conta que a gravidez não existiu. Podem existir diversos questionamentos, dúvidas e angústias seja qual for a decisão que se toma a partir da gravidez indesejada.  

Consequências sociais e relacionais

A gravidez indesejada pode impactar na relação do casal, por exemplo, bem como na relação da pessoa grávida com outras pessoas da sua vida. Pode existir, por exemplo, um maior isolamento. Muitas vezes, a pessoa não quer contar que está grávida e sente vergonha ou receio do julgamento alheio, o que leva a que se isole e não partilhe com os outros aquilo que está a sentir. Este isolamento pode ser tanto mais agravado quanto mais adversa ou pouco acolhedora for a reação das pessoas à sua volta. No casal, a gravidez indesejada pode gerar conflito, que pode ser agravado se houver perspetivas e vontades diferentes em relação à gravidez.

No caso de a pessoa prosseguir com a gravidez, o facto de esta ter sido indesejada pode impactar na relação com o/a futuro/a filho/a, criando por exemplo dificuldades de vinculação, dificuldades em amamentar ou aumentando o risco de desenvolvimento de depressão pós-parto (não quer dizer que isto aconteça em todos os casos, mas há maior risco ou probabilidade de ocorrer do que numa gravidez desejada).

Consequências profissionais e económicas

A gravidez indesejada pode também impactar na vida profissional da pessoa, uma vez que pode levar à necessidade de ausência temporária do trabalho ou o não conseguir assumir determinadas funções e obrigações profissionais (fazer determinados esforços, viajar com regularidade, entre outros exemplos). Estas limitações podem surgir numa fase de maior exigência ou de persecução de determinados objetivos na carreira profissional, podendo levar à sua estagnação. Isto pode ter consequências financeiras, mas estas também podem surgir por outras razões, como os encargos e custos associados à gravidez ou ao cuidado de um bebé. Enquanto numa gravidez desejada pode existir uma adequada preparação e planeamento destes custos, numa gravidez indesejada estes não faziam parte dos planos, podendo não haver uma adequada retaguarda neste sentido.

Consequências para a saúde

Uma gravidez indesejada pode surgir num contexto de saúde frágil e constituir um risco para a pessoa grávida. Não sendo este o caso, podem existir ainda assim outras consequências em termos de saúde, da pessoa grávida e do feto. Isto porque o facto de a gravidez ser indesejada pode fazer com que não seja identificada numa fase precoce e, consequentemente, não existam determinados cuidados ou um acompanhamento pré-natal ajustado.

Prevenir uma gravidez indesejada

Antes de falarmos das formas como, individualmente, podemos prevenir uma gravidez indesejada, é importante não esquecermos também a responsabilidade enquanto sociedade. Isto porque, para que alguém possa prevenir uma gravidez indesejada, essa pessoa deve ter acesso a recursos que lhe garantam autonomia sexual e liberdade reprodutiva. O acesso a métodos contracetivos, a divulgação de informação sobre saúde sexual e reprodutiva de forma correta, fidedigna e acessível a todas as pessoas, são algumas medidas sociais importantes.

Do ponto de vista individual, algumas coisas podem ajudar-nos a prevenir uma gravidez indesejada:

  • Conhecermos o nosso corpo, nomeadamente do ponto de vista sexual e reprodutivo. Para isso, é importante estarmos informados e também ouvirmos o corpo e aquilo que ele poderá dizer-nos;
  • Informarmo-nos sobre métodos contracetivos, nomeadamente através de profissionais de saúde que nos possam melhor aconselhar sobre que o que pode ser o método mais adequado para nós, e procurarmos utilizá-los da forma mais adequada possível;
  • Recorrermos a serviços de saúde com regularidade;
  • Sermos realistas e conscientes quanto às limitações dos métodos contracetivos, para que nos possamos precaver para elas e evitar eventuais comportamentos de risco. Se sabemos, por exemplo, que podemo-nos esquecer de tomar a pílula, podemos ter outros métodos contracetivos disponíveis (como o preservativo) ou pensar noutras práticas sexuais não penetrativas que podemos ter nesses casos;
  • Assumirmos o mais possível o controlo sobre a nossa fertilidade e saúde reprodutiva, decidindo se e quando queremos ter filhos, monitorizando este aspeto da nossa saúde através de consultas apropriadas, etc.;
  • Comunicarmos com o(s)/a(s) nosso(s)/a(s) parceiro(s)/a(s) sobre os nossos objetivos e vontades a nível sexual e reprodutivo, nomeadamente o facto de não querermos engravidar ou do timing e forma como o queremos fazer. Esta comunicação deve ser aberta, transparente, e as necessidades e vontades devem sempre ser respeitadas. Uma relação em que isto não é respeitado é uma relação coerciva e abusiva;
  • Pensarmos com antecedência sobre a possibilidade de uma gravidez indesejada e o que faremos caso ela aconteça. Enquanto seres sexualmente ativos, todos podemos estar sujeitos a uma gravidez indesejada, já que, como vimos, não é possível evitá-la a 100%, mesmo usando métodos contracetivos. Por isso, pode ser bom sermos cautelosos e ponderarmos essa possibilidade, para que tenhamos outra capacidade de gerir a situação e já tenhamos pensado em soluções e alternativas caso a gravidez indesejada aconteça. Esta consciência em si mesma pode fazer com que sejamos mais capazes de prevenir uma gravidez indesejada, porque já pensamos sobre o assunto e não o vemos como uma impossibilidade.

Lidar com uma gravidez indesejada

Quando a gravidez indesejada acontece, o seu impacto pode ser grande e nem sempre é fácil conseguir lidar com a situação. Pensar no que fazer em caso de gravidez indesejada pode levar-nos automaticamente para a parte prática da questão, isto é, o que se vai fazer a seguir. No entanto, existe também toda uma parte emocional e psicológica que também deve ser atendida e considerada.

A esse nível, pode ajudar a lidar com uma situação de gravidez indesejada:

  • Reconhecer que é uma situação que poderia acontecer a qualquer pessoa e desconstruir os pensamentos de culpa;
  • Validar as emoções e sentimentos que possa estar a sentir, sabendo que todas essas emoções são legítimas e procurando acolhê-las sem julgamento;
  • Se possível, ativar a rede de suporte e procurar apoio emocional junto de pessoas da sua confiança;
  • Expressar aquilo que está a pensar e sentir, seja conversando com outra pessoa ou escrevendo os seus pensamentos. Às vezes as coisas ficam muito confusas dentro da nossa mente, e quando as colocamos por palavras tornam-se mais fáceis e, pelo menos, mais organizadas, o que ajudará a pensar e a sentir-se mais em controlo;
  • Identificar as suas próprias crenças e preconceitos em relação a uma gravidez indesejada e tentar desconstruí-los. Por exemplo, é possível que tenha pensamentos como “sou irresponsável por ter deixado isto acontecer” ou “serei uma pessoa terrível se não quiser continuar com esta gravidez”. É importante que consiga identificar estes pensamentos para poder questioná-los e ajustá-los;
  • Permitir-se a sentir confusa, com uma sensação de estranheza ou desamparo, e saber que não irá ficar sempre nesse lugar, mas por agora está tudo bem em estar nele durante algum tempo, sendo que essa sensação não vai durar para sempre.

Depois de reconhecer e integrar a situação da gravidez indesejada, decisões terão de ser tomadas. Primeiramente, decidir se a gravidez será interrompida ou não. Como em qualquer decisão, a recolha de informação é uma fase muito importante para tomarmos uma decisão mais ponderada e de forma mais segura. Por isso, neste processo de tomada de decisão é importante recolher informação sobre a interrupção voluntária da gravidez (como e onde pode ser feita, como decorre o processo, quem pode ajudar, quem me pode esclarecer dúvidas, etc) e analisar os prós e contras das duas opções ou alternativas.

Quando se opta por um processo de interrupção voluntária da gravidez, este pode ser muito intenso e difícil de gerir. Ninguém que interrompe uma gravidez o faz de forma leviana e fica incólume, geralmente há um impacto, por muito segura que a pessoa esteja da sua decisão. Quanto mais não seja, porque socialmente existem questões morais associadas. Por isso, no caso de este ser o caminho, é também importante haver espaço para estas emoções serem integradas, e é fundamental haver apoio, seja das relações pessoais, seja ajuda mais especializada de um profissional de saúde mental.

Caso a opção seja prosseguir com a gravidez, há também outras decisões a tomar em relação ao curso da gravidez e, depois, ao nascimento do bebé. Mais uma vez, o apoio e suporte é importante, porque passar por uma gravidez indesejada de forma isolada pode aumentar os riscos associados.

A forma como nos sentimos em relação a uma gravidez indesejada pode mudar ao longo do tempo. Pode gerar-se ambivalência, pode haver uma resignação, ou pode até passar a haver vontade de prosseguir a gravidez e este feto passar a ser desejado e querido.

Cada situação é uma situação, e podem ser diversas as decisões a tomar e os desfechos de uma gravidez indesejada. O mais importante para conseguir lidar com ela de forma saudável é respeito por si mesma, compaixão, procura de informação, ativação da rede de suporte e do acesso a apoios, e autoconsciência das suas necessidades. Com estes ingredientes presentes, poderá existir uma maior capacidade de lidar com a gravidez indesejada.  

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